BIOGRAFIAS
Poeta português. Árcade e pré-romântico, sonetista notável, um dos precursores da modernidade em seu país.
Árcade e pré-romântico, Bocage foi um dos primeiros a anunciar a modernidade em Portugal, pelos conflitos que dão força e contundência a seu estilo poético.
Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu em Setúbal em 15 de setembro de 1765. Filho de um advogado sem recursos e de mãe francesa, em 1783 alistou-se na marinha de guerra, embarcando para a Índia três anos depois. Viveu em Goa, Damão e Macau. No regresso a Lisboa (1790), apaixonou-se pela mulher do irmão e se entregou à boêmia, escrevendo versos sobre a desilusão amorosa e as dificuldades materiais. Aderindo à Nova Arcádia com o nome de Elmano Sadino, logo satirizou os confrades a afastou-se do grupo, continuando rebelde, dissoluto, e obsedado pelo paralelismo biográfico com Camões.
Em 1797 foi preso ao divulgar o poema "Carta a Marília", que começa com "Pavorosa ilusão de eternidade". Acusado de impiedade e antimonarquismo, passou meses nas masmorras da Inquisição, de onde saiu para o convento dos oratorianos. Aí se conformou às convenções religiosas e morais da época. Ao voltar à liberdade, Bocage levou vida regrada mas melancólica e de privações, traduzindo autores latinos e franceses.
Maior poeta da língua no século XVIII, Bocage é vítima até hoje de sua própria fama e dos preconceitos que despertou. Sonetista admirável e freqüentemente à altura de seu ídolo Camões, excede-o aqui e ali no arrojo e no niilismo dos motivos: "Louca, cega, iludida humanidade" é algo já distante da atitude clássica e tem um último verso que chega a parecer existencialista: "Pasto da Morte, vítima do Nada!" Assim é também seu individualismo, seu conflito entre o amor físico e a morte, sua morbidez e atração pelo horror, em meio a versos, às vezes, quase coloquiais. Bocage publicou apenas as Rimas (1791-1804), em três volumes. Seus versos eróticos e burlescos circulam até hoje em edições clandestinas. Morreu em Lisboa, em 21 de dezembro de 1805.
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Biografia
SONETOS
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados :
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura ;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados :
Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania :
Desculpa tendes, se valeis tão pouco ;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco .
*****
Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a noite escura e feia ;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado !
Jaz entre as folhas Zéfiro abafado ,
O Tejo adormeceu na lisa areia ;
Nem o mavioso rouxinol gorgeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado :
Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
Que o fio, com que está minh'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte :
Consola-me este horror, esta tristeza ;
Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da Natureza.
*****
Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes, e aos amores,
Hoje serei feliz ! - longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Sabei, amigos Zéfiros, que cedo,
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei-de enfim possuir : porém segredo !
Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o pai dos numes :
Cale-se o caso a Jove omnipresente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.
*****
SONETO NAPOLEÔNICO]
Tendo o terrível Bonaparte à vista,
Novo Aníbal, que esfalfa a voz da Fama,
"Ó capados heróis!" (aos seus exclama
Purpúreo fanfarrão, papal sacrista):
"O progresso estorvai da atroz conquista
Que da filosofia o mal derrama?..."
Disse, e em férvido tom saúda, e chama,
Santos surdos, varões por sacra lista:
Deles em vão rogando um pio arrojo,
Convulso o corpo, as faces amarelas,
Cede triste vitória, que faz nojo!
O rápido francês vai-lhe às canelas;
Dá, fere, mata: ficam-lhe em despojo
Relíquias, bulas, merdas, bagatelas.
(1) Este soneto foi escrito na ocasião em que o exército francês
comandado por Bonaparte invadira os estados eclesiásticos (1797),
chegando quase às portas de Roma, e ameaçando o solo pontifício. O verso
nono: "Delas em vão rogando um pio arrojo," envolve uma espécie de
equívoco, ou como hoje se diria um calemburgo [ou trocadilho]; porque
Pio VI era o papa, que então presidia na "universal igreja de Deus". O
penúltimo verso lê-se em algumas cópias do modo seguinte: "Zumba,
catumba; ficam-lhe em despojo". [nota da fonte]
*****
[SONETO DO EPITÁFIO]
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade,
Que engrole "sub-venites" em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro".
*****
[SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO]
Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás:
A espada do membrudo Ferrabrás
De certo não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.
Creio que nas fodais recreações
Não te hão de a rija máquina sofrer
Os mais corridos, sórdidos cações:
De Vênus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.
IV [SONETO (DES)PEJADO]
Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe foi (oh céus) metendo
O meu caralho, que de amor fervia:
Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;
E eu solapado os beijos remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:
Entra a vir-se a menina... Ah! que vergonha!
"Que tens?" — lhe diz a mãe sobressaltada:
Não pode ela encobrir na mão langonha:
Sufocada ficou, a mãe corada:
Finda a partida, e mais do que medonha
A noite começou da bofetada.
V [SONETO AO ÁRCADE FRANÇA]
No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França. (2)
Este, com mogigangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança.
Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:
Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.
(2) "Bocage, o folgazão, rostia o França." Se o soneto foi escrito, como
parece, pouco antes das contendas com os Árcades, isto é, entre os anos
de 1791 e 1793, o França, nascido em 1725, devia então contar os seus 67
de idade! -- "Rostir" é verbo neutro, que em sentido figurado significa
"mastigar". Fazemos aqui esta observação, porque já notamos que alguém
entrou em dúvida acerca da verdadeira inteligência do vocábulo. [nota da
fonte]
[nota de GM] Reparo como os críticos ficam cheios de dedos, relutantes
em admitir qualquer conotação homossexual na poesia de Bocage, ainda que
o poeta, em sonetos como o XV e o xx, não escondesse que um cu masculino
lhe era apetecível. Neste caso, o sentido de "rostir", além de surrar,
esbofetear, roçar, esfregar-se em, bolinar ou mesmo desonrar moralmente,
pode muito bem aludir ao sexo oral ou anal, pouco importando se o tal
França fosse o árcade ou outro mais jovem, já que o objetivo é expor o
satirizado ao ridículo.
VI (3) [SONETO DE TODAS AS PUTAS]
Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta d'um soldado;
Cleópatra por puta alcança a c'roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.
(3) Variante sugerida pelo próprio Bocage para o verso oitavo:
"Não passa o cono teu por cono honrado".
*****
[SONETO DA CAGADA]
Vai cagar o mestiço e não vai só;
Convida a algum, que esteja no Gará,
E com as longas calças na mão já
Pede ao cafre canudo e tambió:
Destapa o banco, atira o seu fuscó,
Depois que ao liso cu assento dá,
Diz ao outro: "Oh amigo, como está
A Rita? O que é feito da Nhonhó?"
"Vieste do Palmar? Foste a Pangin?
Não me darás notícias da Russu,
Que desde o outro dia inda a não vi?"
Assim prossegue, e farto já de gu,
O branco, e respeitável canarim
Deita fora o cachimbo, e lava o cu.
(5) Diz-se que este soneto fora escrito em Goa e dirigido a D. Francisco
de Almeida, fidalgo de raça mestiça cuja índole e costumes o poeta quis
assim escarnecer. Derramou por todo ele vocábulos da língua canarina,
cuja explicação debalde se procurará nos dicionários. Em edições
anteriores diz-se que "tambió" quer dizer "tabaco"; "fuscó", "peido";
"gu", "trampa", etc. Valha a verdade! [nota da fonte]
*****
[SONETO DA DONZELA ANSIOSA]
Arreitada donzela em fofo leito,
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachacho estreito:
De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branca crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito:
A voraz porra as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrados:
Como é inda boçal, perde os sentidos:
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.
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[SONETO DO PAU DECIFRADO]
É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:
Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:
À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!
Para carvalho ser falta-lhe um U; [carualho]
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.
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SONETO DO PREGADOR PECADOR]
Bojudo fradalhão de larga venta,
Abismo imundo de tabaco esturro,
Doutor na asneira, na ciência burro,
Com barba hirsuta, que no peito assenta:
No púlpito um domingo se apresenta;
Prega nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o grão sussurro
O dique das asneiras arrebenta.
Quatro putas mofavam de seus brados,
Não querendo que gritasse contra as modas [qu'rendo]
Um pecador dos mais desaforados:
"Não (diz uma) tu, padre, não me engodas:
Sempre me há de lembrar por meus pecados
A noite, em que me deste nove fodas!"
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[SONETO DO CARALHO POTENTE]
Porri-potente herói, que uma cadeira
Susténs na ponta do caralho teso,
Pondo-lhe em riba mais por contrapeso
A capa de baetão da alcoviteira:
Teu casso é como o ramo da palmeira,
Que mais se eleva, quando tem mais peso;
Se o não conservas açaimado e preso,
É capaz de foder Lisboa inteira!
Que forças tens no hórrido marsapo,
Que assentando a disforme cachamorra
Deixa conos e cus feitos num trapo!
Quem ao ver-te o tesão há não discorra
Que tu não podes ser senão Priapo,
Ou que tens um guindaste em vez de porra?